"Comece pelo começo - respondeu o Rei, muito sério - E vá até o fim. Quando terminar, pare." (Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Sobre um desabafo pessoal. - Continuação IV

Davi se esforçava para acompanhar os fatos ainda tonto pela tentativa de estrangulamento do boneco contra ele.
- Saber do quê? Quem é você? Por que Davi, quer dizer, meu boneco tentou me matar?
- Você não vai precisar dessas respostas no lugar para onde vai. - o Palhaço agora parecia ansioso.
- Gerard Syn, sente-se e procure ficar calado! - era a boneca quem falava, mas com um olhar carinhoso e ao mesmo tempo severo e voz imperativa.
Aparentemente hipnotizado, Gerard Syn, o Palhaço, sentou-se na poltrona em que o velho Albert se sentava. Gerard até se parecia com o velho Syn.
- Bom, parece que você terá que ouvir mais uma história, meu rapaz. - começou a boneca - Se for um bom observador, deve ter reparado na semelhança de sobrenomes. Eles eram primos, Albert e Gerard. Ganharam o primeiro boneco no mesmo dia, Albert ganhou Guri e Gerard ganhou Mosly, o Pirata.
Todos olharam para o Pirata, ele estava na janela de cabeça baixa, olhos fechados, pernas e braços cruzados, como de costume. Quando ouviu seu nome levantou a cabeça e tirou lentamente o chapéu. Seus olhos miravam o longe, estavam desfocados mas brilhantes. Dessa vez, porém, o brilho não era de insanidade, era o reflexo de lembranças, saudade, talvez nostalgia. A boneca continuou:
- Até então eles apenas gostavam de bonecos, gostavam muito. Mas não sabiam nada sobre como fazê-los. Você sabe, antes de tudo o boneco escolhe o criador e não o contrário. E, curiosamente, esse cargo ficou durante muito tempo dentro da família Syn. Como Gerard era mais velho que Albert, ele teve sua vez primeiro. Como todos os outros escolhidos, ele ficou encantado com a oficina e os bonecos. Ficava aqui por dias e dias criando coisas novas. Certa vez, quando voltou para casa a encontrou cheia de gente, todos os vizinhos estavam lá. Sua mãe acabara de morrer. Tomado por uma terrível dor, ele subiu correndo as escadas e foi para o quarto da mãe, onde se trancou. E lá estava ela, na cama. Estava pálida, muito pálida. Usava um vestido e sapatilhas. Gerard não aceitara ainda sua perda. Pulou em cima da mãe e, como costumava brincar com ela, mordeu-lhe delicadamente o braço. Mas ela nada fez. Desesperado, o pequeno garoto mordeu novamente aquele braço frio. Mordeu forte, muito forte, e só parou quando sentiu o gosto de sangue em sua boca. Quando conseguiu finalmente diminuir o choro e abrir os olhos, só conseguiu ver a boneca da mãe na cadeira ao lado da cama. Só conseguiu me ver. - a boneca abaixou os olhos ao se lembrar. - Ele me pegou e me trouxe para cá sem que ninguém o visse. E, no desespero e na dor de uma criança, acabou descobrindo algo que nenhum outro criador de bonecos sabia, a nossa humanidade. Não o fato de falarmos, pensarmos, sermos vivos... Isso os outros sabiam. Mas sim, como podíamos ser tão humanos a ponto de substituir pessoas em suas vidas. Ele cortou-me e colocou todo o pouco sangue que ainda estava em suas mãos dentro de mim. - A boneca agora passava a mão numa cicatriz no seu pulso direito na qual Davi nunca tinha prestado atenção. - E então ele disse, ainda chorando...
- Mãe, fale comigo! Eu sei que você está aí dentro agora. - foi o Pirata quem disse, ainda com os olhos desfocados.
- Eu acordei e sim, eu acabei incorporando traços de sua mãe, pensando como ela, sentindo, agindo. Eu me sentia mãe daquele pobre garotinho que chorava à minha frente. E então p abracei e ele se acalmou. O que não durou muito. Seu tio, que tinha sido o criador de bonecos anterior, entrou na oficina gritando por ele. Ele fugiu. Procuraram por ele mas não o encontravam. Suas únicas companhias éramos eu e Mosly. Como Gerard não mandava sinais de uma possível vida, Albert foi o escolhido para ficar em seu lugar. O que ninguém sabia era que Gerard nunca saiu daqui. Ele tem um esconderijo que acabou servindo-lhe de lar por todos esses anos, debaixo dessa oficina. Quando viu que Albert ocupava seu lugar, ficou profundamente triste e resolveu continuar a se esconder. Foi então que começou o que ele é hoje. Foi aí que nasceu o Palhaço. Um palhaço triste...

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sobre um desabafo pessoal. - Continuação III

Davi estava ali parado, admirando seu primeiro boneco. Se admirando. "É uma cópia perfeita.", pensava.
- E então Davi fez o boneco à sua imagem e semelhança! - e o Pirata ria aquele riso que provocava calafrios em Davi. - Só não esqueça que ele deve te obedecer.
O pedaço. Davi pegou a tesoura, cortou um pedaço de seu cabelo e colocou no boneco. "Não podia ter sido melhor", pensava o Pirata sorrindo de lado com os olhos brilhando sinistramente.
- Olá, Davi! - a voz de Davi saía de dentro do boneco - Já sei o que devo fazer. Me dê seus materiais escolares que volto agora para sua casa.
- An... Tudo bem.
Davi estava impressionado. O boneco mal tinha sido finalizado - ou iniciado - e já entendia porque tinha sido feito. Seria mais fácil do que ele havia pensado.
E foi assim por semanas seguidas. O Davi-boneco vivia enquanto o Davi-menino fazia seus bonecos. Mas todos os dias a criação visitava o criador, foi a forma encontrada por Davi para se manter informado apesar de "ausente".
Certa vez, quando já estava no fim da ponte, Davi-boneco encontrou alguém lá o esperando. Estava sentado com as pernas esticadas no chão, braços cruzados. Davi não podia ver seus olhos, estavam tampados por um chapéu. Era o Pirata.
- Olá, oh grande boneco! - naquele tom transbordante de ironia antes do riso de lado.
- Olá, Pirata!
- Não quer dar uma volta comigo?
- Tenho que ver Davi primeiro. Pode ser?
- Ele está muito ocupado agora. Venha comigo.
- Então tá... Onde vamos?
- Quero te apresentar a um velho amigo meu.

Davi estava na oficina, como sempre. Olhou no relógio e se perguntou sobre o atraso de seu visitante diário. Ele nunca se atrasa. Mas logo esqueceu. A bonequinha de vestido rodado e sapatilha estava na cozinha fazendo bolinhos de chocolate. Aquele cheiro gostoso que saia de dentro do forno ia para a oficina junto com os leves e quase inaudíveis passos da boneca. O leite quase não se mexia no copo acompanhando o andar coreografado da quase-menina. Até que uma poça branca se formou na porta da oficina.
A boneca deixara a bandeja cair e estava parada, sem reação... Não acreditava no que via. Não podia!
Era alguém tentando acabar com seu próprio eu, era Davi estrangulando Davi, era o boneco se livrando da sua origem.
Com o barulho da bandeja caindo os outros bonecos correram para ver o que acontecia. Agora Groy, Kim, Sloop e Dot tentavam tirar o menino do aperto do boneco. Foi quando Kim pegou sua adaga e perfurou o boneco que finalmente largava Davi que caía fraco no chão.
Impossível. Pingavam gotas... Vermelhas. Sangue.
- Belo golpe, Kim! - ria o Pirata que acabava de aparecer na oficina.
- Você! - e Kim apontava furiosa a adaga contra o Pirata - O que você fez?
Uma risada vinha da sala. Um riso indescritível. Um riso que mais parecia um agouro. E todos deram um passo para trás quando viram aquela figura adentrar a oficina.
Não era um deles. Era humano. Aparentemente louco, mas humano. Tinha roupas encardidas de palhaço, o pouco cabelo que tinha se embolava nas laterais da cabeça, no rosto aquela típica maquiagem de palhaço. Assombrosa, já desgastada.
- Um... palhaço?! - Davi se levantava do chão ainda um pouco tonto e sem ar.
- Logo se vê que você é um deles - a voz do palhaço era quente e escura, uma nuvem de fumaça - Um palhaço, eu. Você deve pensar que sou mais um desses idiotas que vestem roupas coloridas e se passam por bobos para fazer rir as tolas crianças. - e ele ria - Eu sou um palhaço, sim. Mas um palhaço legítimo. Vocês, pobres espectadores, precisam ser enganados por nós para rir. Seu sorriso e, claro, suas lágrimas, estão em nossas mãos. Nós não "trabalhamos" para vocês. Muito pelo contrário... Vocês são nossas marionetes e até nos divertem. E é quando a vida vira as costas para você e passa seu sorriso para o rosto de outro alguém, que você descobre... É aí que você se encontra, percebe seu dom, ser um palhaço.
- Como, virar as costas, trocar sorrisos...? O que houve? - Davi já não entendia mais.
- Não temos tempo para histórias agora garoto. Você já está tempo demais no meu lugar.
- Pare! - Davi nunca tinha escutado aquela doce boneca gritar dessa maneira. Ela chorava.- Ele deve saber.

sábado, 18 de setembro de 2010

Sobre um desabafo pessoal. - Continuação II

A oficina era incrível! Vários instrumentos que Davi nunca tinha visto. Seus olhos brilhavam!
- Primeiro você precisa saber para que serve cada um deles - começou Dot.
- Com esses plásticos você faz as formas e coloca nesse compartimento depois para os bonecos ficarem fortes - continuou Groy mostrando seus músculos.
- Aqui estão os cabelos, olhos, tecidos e tudo mais que você precisar para os acabamentos. Como eu fico ruivo? - brincou Sloop com os fios cor de fogo.
- Definitivamente não - riu-se Kim - Esses são os instrumentos que requerem maior cuidado, Davi. São para bonecos de madeira e podem machucar. Todos cortam, alguns furam... Mas isso é pra depois. Quando você crescer mais um pouco é que poderá usá-los.
- Tudo bem... Hum... será que eu já posso... Meus pais! Preciso voltar pra casa!
- Você tem razão! Vá, te esperamos aqui até que volte amanhã.
- Vocês não voltam comigo?
- Não. Alguém precisa cuidar da oficina...
- Tudo bem. Então até mais!
Davi voltou para casa com a cabeça a mil! Já começava a ter ideias de bonecos para fazer. Assim que chegou em casa fechou-se no quarto e começou a esboçar bonecos.
- Davi, por onde esteve o dia todo?
- Andando por aí com minha bicicleta, mãe. - respondeu Davi escondendo seus desenhos. Ele não poderia contá-la. Ela não acreditaria e o proibiria de sair de casa.
- Hum. Amanhã começam suas aulas de administração para aprendizes, não se esqueça.
- Mas mãe, eu já disse que não quero trabalhar na empresa do papai quando crescer!
- Já conversamos sobre isso, Davi. Agora vá tomar seu banho, comer alguma coisa e dormir. Amanhã você tem que acordar cedo para ir para a escola. - Aline beijou o filho emburrado e foi se deitar.
- Droga.
Davi fez o que sua mãe mandou e foi dormir ainda emburrado.
Na manhã seguinte a aula parecia não passar. Ficou menos intediante na aula de ciências quando falaram sobre clones. Uma luz ascendeu-se na cabeça de Davi. Ele agora era um garoto que fazia bonecos e tinha uma oficina toda equipada. Mais do que isso, ele tinha sido escolhido e estava sendo treinado para criar bonecos que ganhariam vida. Sua vontade era se dedicar totalmente aos bonecos, mas com a escola e agora as detestáveis aulas de administração, era impossível. Talvez se ele pudesse estar em dois lugares diferentes ou, mais do que isso, ter duas vidas. Paralelas.
O sinal tocou acordando Davi de seus pensamentos. Rapidamente ele jogou seus materiais na mochila e foi para o carro onde sua mãe já estava esperando. No caminho para casa ele não falou nada, mas seus olhos brilhavam refletindo o que passava em sua cabeça. Almoçou até mais do que o normal de tão animado que parecia estar.
Quando terminou seu almoço, Davi foi para o quarto e começou a tirar suas medidas e anotá-las num pedaço de papel.
- Vamos, Davi! Vou te deixar na aula - Aline passou lembrando Davi de sua aula.
Ele guardou o papel com as medidas no bolso e foi com a mãe.
A aula era realmente um saco. O que eles tinham na cabeça para ensinar administração para meninos de nove anos? Davi queria sair logo dali. O que o confortava e acalmava um pouco era saber que depois de sair dali não precisaria mais aturar nada que incluísse salas de aula. Sua ideia era ótima!
Com o fim daquela aula eterna que mais parecia uma tortura, Davi saiu em disparada para a casa do lago. Os bonecos pareciam estar no meio de uma brincadeira quando ele chegou. Foi logo os convocando:
- Venham até a oficina, eu tive uma ideia brilhante! Sentem aí pra eu explicar. Pronto? É o seguinte: quero criar um boneco de mim, como um clone. Além de ser fisicamente igual a mim, ele deve pensar e agir da mesma forma que eu, assim ele pode passar a viver no meu lugar e eu terei o dia todo para ficar aqui com vocês e criar bonecos. E então, vão me ajudar?
Os bonecos se entreolharam e começou a maior bagunça. Todos falando ao mesmo tempo o que achavam daquilo.
- Hey, calma! Um de vocês não pode falar por todos?
Saiu então, detrás do armário, uma boneca linda na qual Davi nunca havia reparado. Ela usava sapatilhas, vestido rodado, fita no cabelo, e era tão doce, uma perfeita bonequinha. Ela disse timidamente com sua voz suave:
- Não acha um pouco perigoso? Quero dizer, não sabemos até que ponto ele será igual a você ou poderá ser controlado. Por mais que vocês se pareçam, você é humano e ele continua sendo um boneco apesar de tudo.
- A menos que você faça as coisas direito, consultando alguém que realmente saiba. - todos olharam para a janela.
O ambiente que parecia até ter se aquecido com a voz suave da boneca, se congelara quando o boneco sentado na janela falou. Não dava para ver o seu rosto, seu chapéu de pirata o cobria.
- O que você quer dizer? - perguntou Davi ao pirata, curioso.
O pirata deu um sorriso como de superioridade, respirou fundo teatralmente e começou a dizer:
- É simples - ajeitou o chapéu com a ponta do dedo, ainda de olhos fechados - se fizer o que eu digo, marujo.
Pulou da janela para a mesinha e continuou enquanto andava:
- Fazer o boneco é o de menos, você tira suas medidas, faz a forma e pronto. Seu cabelo e olhos, convenhamos, não são nada inovadores, nós os encontraremos facilmente no estoque. O boneco ganhar vida é natural uma vez que a função foi passada a você. O ponto é: o boneco não pode ter pensamentos e, menos ainda, sentimentos próprios. Para isso, já dizia a grande bruxa dos mares, é preciso uma única coisa... - seus olhos brilhavam de maneira estranha - É preciso algo seu no boneco, algo do seu corpo.
- Do meu corpo? - espantou-se Davi - Mas o quê?
- Isso já não é mais comigo, marujo. Só se lembre de que o seu pedaço determinará a obediência do boneco. - e saiu andando.
- Mas, mas... Volte aqui! - gritou Davi, mas o pequeno pirata se conteve em apenas fazer um gesto com as mãos e continuar seu caminho.
Pense, Davi. Pense. Sem mais escola nem aquelas aulas chatas de administração. Papai e mamãe estão sempre tão ocupados que não vão notar a mínima diferença entre mim e um outro eu. Passar o dia todo criando bonecos, convivendo com eles. Isso vale. Mas um pedaço de mim? Não, eu não vou me machucar, não sou louco. Mas eu posso tirar algo meu, do meu corpo, sem me machucar. Claro!
Silêncio. Os bonecos esperavam ansiosos, olhos aflitos.
- Bom, acho que temos um boneco para fazer!
- Davi! - a voz doce sumia em meio à euforia.
- Aqui estão minhas medidas. Dividam-se em grupos!
Enquanto os bonecos se agrupavam em meio ao tumulto que tinha virado aquela pequena oficina, a doce boneca se afastava sozinha sem ninguém perceber, uma lágrima escorrendo pelo seu rosto pequeno.
- Vocês, peguem a massa necessária para a forma! - comandava Davi - Vocês, busquem os panos! Vocês, peguem algum conteúdo para o boneco! Vocês, façam os sapatos! Vocês, cuidem das unhas e dos olhos! Vocês, busquem os cabelos!
Davi estava eufórico, até sua respiração estava acelerada!
- E então, Davi? Pronto para ser seu próprio criador?
O pirata sorria um riso malvado de trunfo doentio por detrás da porta:
- A oficina é realmente incrível, Davi!

domingo, 15 de agosto de 2010

Sobre um desabafo pessoal. - Continuação I

Era o que estava escrito no bilhete que veio na caixa do boneco que completava a coleção de Davi.
Os Garotos de Aloah eram quatro: Groy, o grandalhão; Kim, a guerreira brava e charmosa; Sloop, o curioso atrapalhado; e por fim Dot, o esperto. Para que Davi completasse sua coleção faltava apenas Sloop. Era seu aniversário, 4 de março, quando seus pais entraram em seu quarto bem cedo e colocaram lá o boneco num lindo embrulho. Aquela euforia de quem acaba de completar 9 anos logo tomou conta de Davi que abriu rapidamente o presente quando acordou. Na hora ele já pegou os outros três bonecos e foi brincar com seus amigos. Foi um dia de festa! Davi estava tão cansado que acabou dormindo na sala junto com os brinquedos espalhados e os rastros da festa que acabara não havia muito tempo.
"Será que alguém já comprou o boneco e leu minha carta?"
Davi se espreguiçou todo ao acordar e foi para seu quarto. Quando já ia pular na cama para dormir mais um pouco, viu que o embrulho de Sloop ainda estava ali e o jogou no chão. Ao fazer isso, percebeu um papelzinho dentro da caixa e pegou para ler. "Não acredito! É uma carta do senhor Albert Syn pra mim, PRA MIM! Mas o que será isso? Ajudá-lo? Como? Ah, já sei! Essa deve ser uma brincadeira nova dos Garotos de Aloah e eu fui escolhido!". Davi estava radiante, mal conseguia se conter! Quando virou o papel viu que havia algo escrito no verso: "Vale Deni, única casa. Tome cuidado ao atravessar a ponte.". Davi colocou sua coleção de bonecos, agora completa, na mochila e saiu eufórico. Passou correndo pela cozinha onde seus pais tomavam café, pegou um biscoito e saiu porta afora:
- Vou brincar e volto mais tarde!
Pegou a bicicleta e seguiu a caminho do Vale Deni que não ficava longe dali. O Vale Deni era o único dos sítios que restou na cidade. Ficava separado do centro por um lago sob uma ponte bem antiga.
Davi deixou a bicicleta no fim da estrada e foi andando cansado pelo gramado até chegar no lago. Quando colocou o pé na ponte, suas madeiras começaram a cair uma a uma. Assustado, Davi tirou o pé e, ao fazer isso, viu que as madeiras voltavam para o lugar. Então lembrou-se do verso da carta onde a ponte havia sido mencionada. Tinha um jeito certo de atravessá-la, mas qual seria? Davi sentou-se na grama em frente à ponte, tirou os bonecos da mochila e colocou-os em formação. Ficou ali olhando para eles com a cabeça apoiada nas mãos e tentando pensar na maneira de atravessar a ponte. Segurou Dot firme nas mãos desejando ter sua esperteza, mas não resolveu. Pegou Kim e começou a brincar com ela, distraído...
- E Kim dá mais um de seus saltos fantásticos!
E quando encosta na ponte não é mais uma boneca inanimada. Mas como assim? A boneca encostou na ponte e começou a "ter vida"? Sem entender e curioso, Davi pegou os outros bonecos e colocou-os na ponte. Eles começaram a se mover sozinhos! Davi, maravilhado, os seguiu até o outro lado da ponte. Eram incríveis! Enquanto andavam, Groy ia atrás dos outros três com uma expressão sempre séria e seus grandes músculos todos enrijecidos. Kim vinha na frente de Groy caminhando graciosamente mas sempre atenta, qualquer folha que passasse voando era motivo para empunhar sua adaga. Quando o estômago de Davi roncou e Kim ameaçou fincá-lo, até Groy retorceu o rosto no que parecia ser um sorriso. Junto a Kim vinha Sloop todo distraído. Guiando os outros vinha Dot com sua pose de galã. Mas foi só chegarem no final da ponte que eles voltaram a ser bonecos comuns. Davi os virava de cabeça para baixo, sacudia, mas nada. Então carregou os bonecos até a casa de Syn, logo ali perto. Bateu na porta e esperou. De lá surgiu um velhinho de aparência simpática.
- O que deseja, pequeno rapaz?
- Vim para a brincadeira! - e Davi estendeu-lhe os bonecos. A expressão do velho Syn mudou de repente. - Entre, garoto!
A casinha de Syn era incrível! Cheia de muitos bonecos, todos visivelmente antigos. Davi se sentou numa poltrona muito confortável e o velho Syn, ainda sério, sentou na outra poltrona em frente ao garoto.
- Então parece que foi você quem encontrou o bilhete.
- Sim, fui eu! E vim logo, estou muito animado!
- Você me lembra de quando era mais jovem... Você consegue ouvir atentamente uma história, rapaz?
- Claro! - disse Davi enquanto colocava os quatro bonecos sentados ao seu lado.
- Quando eu era jovem - começou Syn com o olhar distante - Assim do seu tamanho, o que já faz bastante tempo, ganhei meu primeiro boneco. Como não tinha irmãos e meus pais estavam sempre ocupados com o trabalho, ele foi meu melhor amigo. Ninguém acreditava em mim quando eu falava, mas meu boneco não era comum... Ele era vivo! Nós brincávamos muito, conversávamos, éramos felizes. Mas à medida que fui crescendo, ele foi ficando cada vez mais triste até que um dia não viveu mais. Se tornou um boneco como todos os outros. Na época não entendi o motivo daquilo, mas hoje, com a minha idade já avançada, percebo meu erro e desejo poder voltar atrás... Me arrependo por ter sido tão egoísta. Quando Guri - esse era o nome da minha boneca de capa amarela e cabelos azuis que insistia em dizer que era um garoto - viveu pela primeira vez, fiquei tão feliz de ter um amigo que não pensei em mais nada. Não sabia como deveria tratar um amigo e nem pensei em aprender. Tudo que queria dele era atenção. Falava dos meus sonhos, meus planos, meus pensamentos, contava para ele das coisas que gostava... Ele, como um bom amigo, ouvia tudo atentamente, comentava com cuidado e por mais que estivesse cansado, se mantinha firme ali me ouvindo até o final. Mesmo quando estava triste, ele deixava a tristeza de lado para ficar comigo. E eu nunca me importei. Nunca perguntei como ele se sentia, do que gostava, nunca lia ou ouvia o que ele me sugeria. Nada. Fui um egoísta. E ele foi se entristecendo até morrer. Foi só quando vi que ele voltara a ser um boneco inanimado que percebi como fui redondamente tolo. Desde então bonecos são minha vida. Faço bonecos buscando uma maneira de me desculpar com Guri. Porém, de uns tempos pra cá, meus bonecos tem agido de forma estranha. Tudo o que eu falava com Guri que queria fazer e nunca consegui, eles fazem! Fazem e morrem...
Davi quase não piscava e já ouvia a história com a boca aberta.
- Sonhei com Guri. Ele, digo, ELA disse que os bonecos faziam isso comigo para ver se eu estava realmente arrependido e preparado. Preparado para receber minha segunda chance. Mas preciso de alguém para levar meu trabalho adiante, a magia de criar bonecos não pode parar. Os bonecos escolheram você, meu pequeno. Você gostaria de fabricar bonecos?
Davi não sabia o que responder. Bonecos sempre foram sua paixão, mas ele era tão pequeno!
- Mas será que eu consigo? Não sou ainda muito criança?
- Os bonecos te ensinam tudo o que você precisar aprender...
Davi percebeu, era uma oportunidade que nunca mais teria.
- Sim, eu quero! Quero ser como você, senhor Syn!
Albert deu uma risada gostosa.
- Então... - estalou os dedos.
Os bonecos das prateleiras começaram a se mexer. Puxaram a barra da calça de Davi o levando até os fundos da casa - a oficina de bonecos. Davi voltou e pulou no velho Syn num abraço apertado.
- Obrigado, senhor Syn! - e foi junto com os bonecos.
De debaixo da poltrona em que Davi estava sentado, eis que saiu um boneco.
- Guri! - disse senhor Syn com a voz daquela criança dentro dele e olhos marejados.
- Chegou a hora da sua segunda chance, meu amigo!
O velho Syn colocou Guri na palma da mão e caminhou em direção à porta.
E lá foram os dois numa segunda chance de se aprender a viver. Amar, cuidar, conviver. Aprender a cuidar de quem se ama por toda a sua convivência. E depois...

domingo, 8 de agosto de 2010

Sobre sensibilidade.

De novo ele veio. De novo as mesmas desculpas. De novo o mesmo temperamento. Mesmo assim a mulher o esperara depois de mais um dia de trabalho. Ele mal a via e já ia direto para o banho e depois, imediatamente, dormir. No outro dia, como todas as manhãs, a mulher já havia acordado e ido trabalhar lhe deixando o café pronto. E assim foi por 15 anos e alguns meses. Para ele, ela passara a ser talvez uma parte da mobília. Certa manhã de sol, ele acordou e se arrumou automaticamente. Passou pela cozinha, tomou seu café já pronto como sempre fazia. Teve mais um dia de trabalho cansativo, chegou em casa, foi direto para o banho e, imediatamente, cama. Mas a cama estava espaçada, parecia maior... Olhou ao redor. Não, a cama não aumentou. Será que estava enlouquecendo? De repente toca a campainha. "A uma hora dessas, quem pode ser?". Abre a porta pronto para amaldiçoar quem quer que seja que veio importunar um homem cansado a essa hora da noite. Foi surpreendido, não havia ninguém na porta, mas sim uma rosa com um cartão e algo parecido com um anel. No cartão estava escrito: "Feliz 16 anos de casamento!". Ele conhecia aquela letra. A letra combinava perfeitamente com o vazio na cama e o anel tinha a mesma espessura do silêncio que o cercou naquele instante. Não era uma mesa que ele havia passado do meio da sala para o canto, era de sua mulher que ele havia esquecido, da pessoa que mais se importava com ele. Como achá-la agora? Onde procurar? Saiu sem rumo pelas ruas e acabou chegando numa praça, onde, em seu primeiro encontro, tinha dado uma rosa vermelha para sua mulher. Lá, encontrou uma caixinha de jóias que logo reconheceu. Nela, outro bilhete: "Deixo meu coração contigo, como ele sempre foi seu. Cuide dele e não se esqueça que ele bateu unicamente por você. De sua eterna Beatriz." Marcelo nunca soube o que houve com sua Bia. Desespero apenas não mostra no que ele se afundou. Arrependimento não descreve o que sentia. Mas afinal, se em 16 anos ele esqueceu algo inesquecível como sua amada, em quanto tempo esqueceria aquela caixinha, aquela praça, aquela rosa e aqueles cartões?

sábado, 7 de agosto de 2010

Sobre um desabafo pessoal.

Olá, sou Albert Syn e faço bonecos. Na verdade não são bonecos comuns... Depois que estão prontos, são acionados e praticamente ganham vida. Mas de uns tempos pra cá eles estão se comportando de forma estranha; não são mais simplesmente bonecos, são uma cópia de mim. Eles passam meses me observando atentamente e depois começam a agir como eu, usar coisas que uso e até mesmo gostar das coisas que gosto! Mas o que me incomoda mais é o fato deles roubarem meus sonhos para eles... Tudo o que quero fazer meus bonecos fazem, com a minha ajuda, e depois se esquecem de mim. Fico feliz com o dom que ganhei, fazer bonecos é algo precioso. Mas às vezes quando converso com o que habita dentro de mim me pergunto se não recebi o dom errado... Gosto do que sei fazer, mas gosto mais ainda do que me é negado por natureza. E agora me encontro preso aos meus bonecos! Não consigo parar de fabricá-los! Eles realizam coisas por mim, o que me deixa aparentemente feliz, mas no fundo... Sim, eu sei que no fim terminaremos iguais, e que eles são só bonecos. Mas o que pode haver até lá? Então, comprador deste boneco, te peço, me ajude!

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Outro.

"I asked for love
I asked for mercy

I asked for patience

but you're already all of these things.
I asked for love

I asked for mercy

I asked for sunshine

and then I begged you for the rain.

If I knew what I needed

If I knew what was good for me i'd be down on my knees
begging please

let your light shine bright inside of me.
"

Hayley Williams

Sobre pontos de vista.

Quando criança, Marina adorava ler e fazer seus faz de contas. Menina com imaginação voadora, estava sempre com alguma história na cabeça. Como a maioria das crianças de sua idade, tinha amigos imaginários, o seu era um urso azul chamado Pudim. Um dia, Marina acordou de noite quando Pudim a cutucou. Ainda tonta de sono, Marina viu que haviam outros juntos com Pudim e ficou feliz ao vê-los. Eles conversaram, brincaram, pularam e cantaram a noite toda. Duas borboletas fluorescentes entraram no quarto, pousaram em Marina e logo depois foram embora. Marina estava tão feliz! Ela não queria parar de brincar com seus novos amigos. Apareceram então duas abelhas bem grandes que a ferroaram no braço. Doeu muito e as paredes do quarto começaram a brilhar e... nada. Tudo preto. Marina só sentia preguiça e queria dormir. No outro dia a luz do Sol brilhava na janela do quarto de Marina. Quando a porta se abriu, era inacreditável, a Rainha Branca entrou em seu quarto e lhe ofereceu uma jujuba muito gostosa. Marina sabia que de onde aquela tinha vindo tinham outras e começou a procurá-las. Atrás de uma grande árvore ela encontrou não só jujubas como vários outros doces e começou logo a devorá-los! Ela então reencontrou seus amigos imaginários e começou um longo passeio com eles.

Quando
criança, Marina adorava fazer seus faz de contas. Menina com imaginação voadora, estava sempre contando suas fábulas para seus pais. Sua mãe certa vez a ouviu conversar com alguém chamado Pudim. Pensou que era mais uma das histórias da filha e não perguntou nada. Certa noite, seus pais acordaram com gritos de Marina. Apavorados, foram até o quarto da filha ver o que estava acontecendo e a encontraram deitada no chão, gritando e com os olhos desfocados. Eles a pegaram e colocaram na cama. Marina esperneava. Sem mais o que fazer, ligaram para o médico de Marina que ao chegar e ver o estado da menina logo lhe aplicou duas injeções para acalmá-la. Maria logo caiu num sono profundo. O médico, com muita tristeza, sugeriu aos pais que encaminhassem a menina para uma clínica psiquiátrica o mais rápido possível. Foi o que, com muita dor, fizeram. Marina passou a noite toda na clínica. Quando acordou, uma enfermeira foi lhe dar um calmante, que por sinal não fez efeito. Porque sem que ninguém percebesse, Marina se levantou e saiu. No final da tarde, foi encontrada em estado deplorável no armário de remédios.

Ah, as alucinações!

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Sobre a boneca de Isa.

Isa era uma garota linda. De bom coração, sempre pronta a ajudar, cheia de talentos, inteligente, sonhadora... "A boneca da casa verde." - pensava Amanda, a moradora da casa amarela ao lado da de Isa. Da janela da torre da casa amarela, Amanda acompanhava casa movimento de Isa. Quando chegava, quando saia, com quem estava, a via dançar, desenhar, cantar, namorar... Não se cansava de observá-la. Seus olhos brilhavam sempre que se deparavam com a luz de Isa. Queria estar perto dela, tocar aquela pele tão bonita, ouvir aquela voz doce falando seu nome... Mas tinha medo. Amanda sempre carregava consigo uma boneca, sua única companhia. A menina se trancara na torre de casa desde que completara 12 anos... Desde que Isa se mudara para a casa verde, há um ano, Amanda passara a chamar a boneca com seu nome a conversar e cuidar dela como se fosse a menina da casa do lado. Dia após dia as coisas aconteciam normalmente, Isa vivendo sua vida e Amanda observando-a. Num dia de setembro, enquanto a menina solitária brincava com sua boneca percebeu algo estranho. Sentou a boneca e Isa fez o mesmo. Amanda fez a boneca rodar, pular, girar, acariciar os cabelos, deitar, rolar, e Isa repetiu todos os movimentos com precisão. Assustada, Amanda jogou a boneca e se escondeu num canto da torre, não antes de ver Isa caindo no chão de seu quarto. A menina solitária, então, teve medo. O que poderia ser aquilo? Por que Isa repetia os movimentos da boneca? Amanda ficou uma semana sem pegar sua boneca. Depois desse tempo ela voltou para sua janela e viu Isa em seu quarto, sentada na penteadeira, penteando seus longos cabelos pretos, lisos. Quando Isa prendeu seu cabelo, Amanda pôde ver com clareza uma marca de meia lua na nuca de Isa. "Não pode ser!" Amanda não falou por dias, mas seus pensamentos pareciam voar de tão velozes. Ela pegou a boneca e disse em seu ouvido: "Vá para a passagem, você ainda sabe onde é.". Depois de 4 anos trancafiada na torre, Amanda finalmente saiu. Foi em direção ao jardim lateral de sua casa, em uma pequena porta onde teve que ficar de joelhos para ver o outro lado. E lá estava Isa, impecável! A menina solitária não deixou cair uma lágrima de seus olhos azuis e tocou com carinho o rosto de Isa. Um clarão cegou-a nesse exato momento e ela caiu já sem vida na grama. Isa deu um suspiro forte, como se tivesse acabado de viver. Olhou a boneca caída aos pés daquela menina estranha, era ela! Apavorada com a cena à sua frente, Isa correu pelo primeiro caminho que encontrou e acabou chegando na torre e assim que entrou, trancou a porta e pôs-se a chorar. Algum tempo depois, já mais calma, Isa levantou a cabeça de seus joelhos e viu u livro em sua frente... Ainda meio tonta com os últimos acontecimentos, pegou o livro e o abriu. Era um diário. Em uma página do mês de setembro estava escrito com letra de criança: "Querido diário, Hoje eu e a Bianca, minha melhor amiga fizemos uma promessa na portinha do jardim. Nós prometemos que nunca iríamos deixar a outra. Eu disse que iria com ela para onde ela fosse e ela disse que faria o mesmo. Para ficar marcado nós desenhamos uma meia lua, uma na nuca da outra, com aquelas canetinhas cheirosas. E como sou distraída, ela disse que me buscaria todos os dias depois da escola. Estou feliz, a Bia é uma grande amiga! Acho que tenho que dormir agora. Amanda." E na página seguinte: "Querido diário, Não sei o que aconteceu... Hoje Bia não me buscou na escola. Quando cheguei aqui em casa contei para minha mãe e ela disse que Bia tinha viajado. Quando fui para a torre, nosso lugar preferido, vi da janela que as coisas dela estavam sendo levadas de seu quarto. Quando descobrir pra que país ela viajou eu te conto, diário. Será que ela foi para a Índia, seu país preferido?! Nossa, ela deve estar feliz... Pena que não se despediu de mim. Mas tudo bem. Eu vou ficar esperando o dia que ela vier me buscar, afinal ela prometeu nunca me abandonar. Boa noite e me deseje bons sonhos! Amanda." Quando Isa fechava o diário comovida com a história de amizade de Amanda e Bianca, caiu dele, virada, uma foto de duas lindas crianças de uns 12 anos de idade. Ao virar a foto, Isa perdeu o chão. Era uma menina idêntica a ela naquela foto e a menina ao seu lado ela logo reconheceu. Sua amiga estava agora morta no jardim de sua casa... Chegou o dia, Bianca finalmente se lembrou de buscar Amanda.

Deseje.


"Podemos fingir que os aviões no céu à noite são como estrelas cadentes? Eu poderia realmente usar um desejo agora... Sim, eu poderia usar um sonho ou um desejo para voltar a algum lugar muito mais simples do que isto. Chega um momento em que você se desvanece à escuridão. Você está olhando para o telefone em seu colo e esperando, mas eles nunca chamam as pessoas de volta.Eu poderia realmente usar um desejo agora... "

Airplanes - B.O.B feat. Hayley Williams

domingo, 30 de maio de 2010

Sobre o mar.


-Ei! Não chegue perto do mar! Já está escurecendo e o Capitão logo vai chegar. Se ele te pegar, te come no jantar e você nunca mais volta - dizia a avó ao neto que procurava conchas na beira do mar. Não passava de mais uma história de terror inventada para manter as crianças longe do mar. Em termos.
Era uma madrugada como outra qualquer na cidade de Cornerstone e o mesmo sol apontou no céu. Surpresa! Quando olharam para o fim da praia, em meio às rochas viram um imenso navio. O navio do Capitão Ness. Apavorados por verem que a lenda era real, os moradores da pequena Cornerstone foram para suas casas, acenderam velas e rezaram. Alguns corajosos entraram na grande embarcação, dois homens e uma mulher. No outro dia havia somente seus corpos boiando na água. Os homens com seus corpos másculos separados da cabeça e à mulher faltava uma perna e seu nariz. Mas o que queria o Capitão Ness? Matar homens e pegar partes femininas para quê? É onde a lenda passa a ser história.
Há tempos, John Ness se apaixonara por uma linda jovem com a qual teve duas lindas meninas: Any e July, gêmeas. A Mulher morrera no parto. Ele, pela falta que sentia da mulher, largou sua olaria e se isolar no mar com as duas meninas. Ele nunca soube como, mas em um ano apenas, as duas meninas tinham porte e mentalidade de lindas moças de uns dezessete anos. E por aí pararam, não mais cresceram nem envelheceram. O pai nunca tentou entender, apenas deslumbrava a beleza das filhas. Certo dia, nadando no mar como sempre faziam, Any e July encontraram um lindo rapaz. Tom era o nome dele. O pai observava os três ao longe. Cansado de ficar parado, adentrou seu navio procurando por algo com que se entreter. Encontrou barbantes e foi brincando com eles até chegar ao lado de fora do navio novamente para observar as filhas. Capitão Ness, homem de estatura mediana, corado pelos dias no mar, forte, cabelos ligeiramente grisalhos, profundos olhos azuis. Esse homem se perdeu ao ver o que acontecia na sua frente. O barbante cai de suas mãos sem força enquanto ele vê o corpo de Any ser arrastado por um grande peixe que parecia homem ou homem que parecia peixe, e o corpo de July boiando no mar sem uma perna. Ainda tonto pelo susto, Ness aproximou seu navio do corpo na água e o resgatou, deixando-o cair de bruços no navio. Virando com cuidado o corpo delicado da garota e tirando seus cabelos daquele lindo rosto, Ness percebeu que faltava ali um nariz. Nos olhos congelados da filha, ele sentiu pavor e um fogo de ódio percorreu sua espinha. Aí é onde se arrebenta a tênue linha entre a obscessão e a sanidade de um homem. O lendário Capitão Ness, que acabara de surgir, pegou o corpo de mármore de sua filha e o manteve no navio, uma sala especial somente para adorá-la. Aos pés daquele corpo incompletamente lindo, Ness mostrou sua raiva e jurou vingança. Absorto em sua ira, o Capitão Ness começou a matar todos os homens que se aproximavam do navio, ainda pela lembrança de Tom. Ainda mais absorto em sua loucura, ele arrancava pernas e narizes das garotas que via e achava parecidas com sua July. Ele tentava a qualquer custo reconstruir o corpo da filha, mas nada se encaixava perfeitamente ali. Anos se passaram e ele persistia em suas tentativas fracassadas. Numa noite de agosto, Ness se encontrou em meio a um nevoeiro. Começou uma tempestade terrível que fez o mar se agitar e dar um solavanco no navio. Capitão Ness foi jogado do outro lado do navio, batendo a cabeça e perdendo os sentidos. Quando o Capitão acordou pela manhã, seu navio estava preso num rochedo e três pessoas perambulavam por ele. Sem fazer barulho, o dono do navio Trovão Choroso pegou sua foice e matou os dois homens arrancando-lhes a cabeça sem pensar duas vezes. A mulher apavorada tentou fugir, mas Capitão Ness mostrou o homem gentil que era e a puxou de volta pelos cabelos. Ela começou a engatinhar freneticamente no chão, fugindo. Aos tropeços, chegou numa sala onde havia um cadáver de pé numa espécie de caixa de vidro. Com muito custo, a mulher reconheceu o corpo e disse num sussurro com o pouco de voz que lhe restava: "Any". Um barulho de ferro e ossos se partindo; o crânio da mulher. Ness cortou-lhe a perna esquerda e o nariz. Remendou-os em July: "Ainda não é você, minha princesa.". Decidido a deixar o lugar, o Capitão jogou os corpos na água e estudou uma forma de desencalhar o navio. Dos rochedos, avistou na praia perfeitas pernas e um belo nariz. Era ela, era July! Mas não July sua boneca de retalhos, July viva e linda, sua única filha caminhando pela areia. O garboso John Ness não se esquecera de como conquistar uma mulher. Buscou seu violão no navio e pôs-se a tocar. Any ouviu a música na areia e procurou de onde vinha. Enfeitiçada, foi em direção dos rochedos. Capitão Ness cheirou-lhe o pescoço e afagou-lhe os cabelos. Era perfeita! Naquela mesma madrugada, o Trovão Choroso estava novamente ao mar, a toda velocidade se distanciando de Cornerstone. E foi assim por dois meses. O navio sem rumo, Any enfeitiçada por um homem que ea não sabia ser seu pai e Ness passando todas as noites no porão do navio. Até que chegou a noite que a loucura daquele homem tanto o fizera esperar. Capitão Ness agarrou Any com violência, como nunca fizera antes, cravando seu corpo contra o dele. Ainda tonta pelo Capitão, Any sentiu uma dor terrível transpassar seu corpo. Quando conseguiu olhar, sua perna não estava mais ali. A dor a entorpecia, a fez perder os sentidos. Logo depois anestesiou-a da vida. Em seguida, Ness arrancou-lhe o nariz reto e empinado. Remendou pela última vez sua boneca July e a levou para o porão. Colocou-a com cuidado num lugar marcado e arrancou-lhe o coração. "Eu te amo, minha menina." foram as últimas palavras daquele Capitão que se encaminhava para outro lugar também marcado e puxava uma alavanca. Uma máquina estranha foi acionada. Suas garras rasgaram o peito do Capitão Ness e levaram seu coração ainda quente e pulsante ao peito aberto da filha que deu um primeiro suspiro pesado de vida - ou morte.
Estava criado o monstro.

Sobre o casarão e os garotos.

Eram quatro adolescentes que se desejavam secretamente, duas garotas e dois rapazes. Depois de alguns copos com 75% de teor alcoólico não poderiam ir para casa. Por que não pernoitar na casa abandonada no final da rua? O medo daquela casa e das histórias que a cercavam ficaram no último copo. Lara, Luiz, Marcela e Thomás. Entraram na casa. Thomás foi curioso na frente seguido por Marcela. Lara e Luiz vinham logo atrás sem saber se andavam, se agarravam ou brigavam. Era uma casa feito aqueles casarões antigos com direito a um grande salão de festas e uma enorme escada que levava ao andar superior onde seus donos foram encontrados mortos, abraçados, no corredor. "Fantasmas? Ah, claro que não!" - Thomás tentava se controlar por pensamento. Quem criara a casa tinha o cérebro mais esperto do mundo e o coração mais frio. Os boatos acerca da casa se dividiam. Uns diziam que os fantasmas do casal não abandonaram o lugar e que todo último dia do mês, às 23:30, dançavam a mesma valsa de seu casamento. Outros diziam que o criador da casa havia colocado nela passagens secretas, armadilhas e que toda a casa funcionava sob total controle de um número que ninguém sabia qual era ou, se sabia, desconhecia o fato e o jeito de utilizá-lo. E lá estavam os quatro garotos.

(...)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Into the night.


"Mas, naquele instante, a lua, deslizou entre nuvens negras, apareceu por trás da rugosa cresta de um penhasco que pendia ameaçador, coberto de pinheiros. À luz do astro, vi ao nosso redor um círculo de lobos com dentes brancos e membros longos e sinuosos, assim como pêlos em desalinho. Eram mil vezes mais terríveis quando conservavam lúgubre silêncio do que quando uivavam. Quanto a mim, o medo paralisara-me. É apenas quando um homem se vê face a face com tais horrores que pode compreender seu significado." Drácula - Bram Stoker

Sobre asas.

Hoje quando Isabela sentou-se para escrever em seu diário, esperava escrever coisas concretas e objetivas, como sempre, refletindo o tédio de todos os seus dias. Mas dessa vez foi diferente. Nenhum pensamento organizado lhe passou pela cabeça. Estava tudo tão confuso... Tudo o que ela conseguia lembrar era aquele rosto, aquele belo rosto se abrindo em um sorriso largo num brilhante cenário de asas. Isabela não era cética, mas também nunca tivera no que acreditar. Pensou por mais de uma vez em se jogar da janela do quarto para ver se seu anjo viria lhe salvar. Para ver aquele rosto mais uma vez e se sentir entre seus braços. Desde que fora descoberto, ele desaparecera. A vida de Isabela nunca tinha sido algo glorioso, memorável, encantado, que a fizesse querer continuar vivendo. Havia uma solução simples para isso: a janela. A janela veio, o anjo não. Ele apenas esperou, ao longe, que ela trilhasse o seu mesmo caminho. Foi exatamente por ele que andei.

Sobre a eternidade.

Não é o sangue, não são os dentes, não são os olhos, não é a sedução. É a morte, não a eternidade. Quando o sol não aquece, nos valemos da lua. Somos seres noturnos, sanguinários, sedutores e assassinos. Quando se tem a eternidade, vale apenas a busca pelo prazer de um psicopata. Moldar o mundo, controlar pessoas e suas mentes, se alimentar delas. Isso aquece o frio de nossa doce e venenosa imortalidade.

Wonderland.


"Nunca imagine você mesma ser outra coisa diferente daquilo que possa parecer aos outros que você é ou poderia ter sido se não fosse diferente daquilo que você aparenta ser às outras pessoas."

"-Tudo está tão esquisito hoje! E ainda ontem as coisas estavam tão normais... Será que durante a noite eu virei outra pessoa? Deixe-me pensar: Hoje de manhã, quando acordei, eu era a mesma pessoa? Tenho uma vaga lembrança de ter me sentido um pouquinho diferente. Mas se eu não for eu mesma, a próxima pergunta é: Quem eu sou? Essa é a questão!"

"-Se cada um tratasse de sua própria vida - resmungou a Duquesa - o mundo giraria bem mais depressa."

Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll