"Comece pelo começo - respondeu o Rei, muito sério - E vá até o fim. Quando terminar, pare." (Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll)

domingo, 15 de agosto de 2010

Sobre um desabafo pessoal. - Continuação I

Era o que estava escrito no bilhete que veio na caixa do boneco que completava a coleção de Davi.
Os Garotos de Aloah eram quatro: Groy, o grandalhão; Kim, a guerreira brava e charmosa; Sloop, o curioso atrapalhado; e por fim Dot, o esperto. Para que Davi completasse sua coleção faltava apenas Sloop. Era seu aniversário, 4 de março, quando seus pais entraram em seu quarto bem cedo e colocaram lá o boneco num lindo embrulho. Aquela euforia de quem acaba de completar 9 anos logo tomou conta de Davi que abriu rapidamente o presente quando acordou. Na hora ele já pegou os outros três bonecos e foi brincar com seus amigos. Foi um dia de festa! Davi estava tão cansado que acabou dormindo na sala junto com os brinquedos espalhados e os rastros da festa que acabara não havia muito tempo.
"Será que alguém já comprou o boneco e leu minha carta?"
Davi se espreguiçou todo ao acordar e foi para seu quarto. Quando já ia pular na cama para dormir mais um pouco, viu que o embrulho de Sloop ainda estava ali e o jogou no chão. Ao fazer isso, percebeu um papelzinho dentro da caixa e pegou para ler. "Não acredito! É uma carta do senhor Albert Syn pra mim, PRA MIM! Mas o que será isso? Ajudá-lo? Como? Ah, já sei! Essa deve ser uma brincadeira nova dos Garotos de Aloah e eu fui escolhido!". Davi estava radiante, mal conseguia se conter! Quando virou o papel viu que havia algo escrito no verso: "Vale Deni, única casa. Tome cuidado ao atravessar a ponte.". Davi colocou sua coleção de bonecos, agora completa, na mochila e saiu eufórico. Passou correndo pela cozinha onde seus pais tomavam café, pegou um biscoito e saiu porta afora:
- Vou brincar e volto mais tarde!
Pegou a bicicleta e seguiu a caminho do Vale Deni que não ficava longe dali. O Vale Deni era o único dos sítios que restou na cidade. Ficava separado do centro por um lago sob uma ponte bem antiga.
Davi deixou a bicicleta no fim da estrada e foi andando cansado pelo gramado até chegar no lago. Quando colocou o pé na ponte, suas madeiras começaram a cair uma a uma. Assustado, Davi tirou o pé e, ao fazer isso, viu que as madeiras voltavam para o lugar. Então lembrou-se do verso da carta onde a ponte havia sido mencionada. Tinha um jeito certo de atravessá-la, mas qual seria? Davi sentou-se na grama em frente à ponte, tirou os bonecos da mochila e colocou-os em formação. Ficou ali olhando para eles com a cabeça apoiada nas mãos e tentando pensar na maneira de atravessar a ponte. Segurou Dot firme nas mãos desejando ter sua esperteza, mas não resolveu. Pegou Kim e começou a brincar com ela, distraído...
- E Kim dá mais um de seus saltos fantásticos!
E quando encosta na ponte não é mais uma boneca inanimada. Mas como assim? A boneca encostou na ponte e começou a "ter vida"? Sem entender e curioso, Davi pegou os outros bonecos e colocou-os na ponte. Eles começaram a se mover sozinhos! Davi, maravilhado, os seguiu até o outro lado da ponte. Eram incríveis! Enquanto andavam, Groy ia atrás dos outros três com uma expressão sempre séria e seus grandes músculos todos enrijecidos. Kim vinha na frente de Groy caminhando graciosamente mas sempre atenta, qualquer folha que passasse voando era motivo para empunhar sua adaga. Quando o estômago de Davi roncou e Kim ameaçou fincá-lo, até Groy retorceu o rosto no que parecia ser um sorriso. Junto a Kim vinha Sloop todo distraído. Guiando os outros vinha Dot com sua pose de galã. Mas foi só chegarem no final da ponte que eles voltaram a ser bonecos comuns. Davi os virava de cabeça para baixo, sacudia, mas nada. Então carregou os bonecos até a casa de Syn, logo ali perto. Bateu na porta e esperou. De lá surgiu um velhinho de aparência simpática.
- O que deseja, pequeno rapaz?
- Vim para a brincadeira! - e Davi estendeu-lhe os bonecos. A expressão do velho Syn mudou de repente. - Entre, garoto!
A casinha de Syn era incrível! Cheia de muitos bonecos, todos visivelmente antigos. Davi se sentou numa poltrona muito confortável e o velho Syn, ainda sério, sentou na outra poltrona em frente ao garoto.
- Então parece que foi você quem encontrou o bilhete.
- Sim, fui eu! E vim logo, estou muito animado!
- Você me lembra de quando era mais jovem... Você consegue ouvir atentamente uma história, rapaz?
- Claro! - disse Davi enquanto colocava os quatro bonecos sentados ao seu lado.
- Quando eu era jovem - começou Syn com o olhar distante - Assim do seu tamanho, o que já faz bastante tempo, ganhei meu primeiro boneco. Como não tinha irmãos e meus pais estavam sempre ocupados com o trabalho, ele foi meu melhor amigo. Ninguém acreditava em mim quando eu falava, mas meu boneco não era comum... Ele era vivo! Nós brincávamos muito, conversávamos, éramos felizes. Mas à medida que fui crescendo, ele foi ficando cada vez mais triste até que um dia não viveu mais. Se tornou um boneco como todos os outros. Na época não entendi o motivo daquilo, mas hoje, com a minha idade já avançada, percebo meu erro e desejo poder voltar atrás... Me arrependo por ter sido tão egoísta. Quando Guri - esse era o nome da minha boneca de capa amarela e cabelos azuis que insistia em dizer que era um garoto - viveu pela primeira vez, fiquei tão feliz de ter um amigo que não pensei em mais nada. Não sabia como deveria tratar um amigo e nem pensei em aprender. Tudo que queria dele era atenção. Falava dos meus sonhos, meus planos, meus pensamentos, contava para ele das coisas que gostava... Ele, como um bom amigo, ouvia tudo atentamente, comentava com cuidado e por mais que estivesse cansado, se mantinha firme ali me ouvindo até o final. Mesmo quando estava triste, ele deixava a tristeza de lado para ficar comigo. E eu nunca me importei. Nunca perguntei como ele se sentia, do que gostava, nunca lia ou ouvia o que ele me sugeria. Nada. Fui um egoísta. E ele foi se entristecendo até morrer. Foi só quando vi que ele voltara a ser um boneco inanimado que percebi como fui redondamente tolo. Desde então bonecos são minha vida. Faço bonecos buscando uma maneira de me desculpar com Guri. Porém, de uns tempos pra cá, meus bonecos tem agido de forma estranha. Tudo o que eu falava com Guri que queria fazer e nunca consegui, eles fazem! Fazem e morrem...
Davi quase não piscava e já ouvia a história com a boca aberta.
- Sonhei com Guri. Ele, digo, ELA disse que os bonecos faziam isso comigo para ver se eu estava realmente arrependido e preparado. Preparado para receber minha segunda chance. Mas preciso de alguém para levar meu trabalho adiante, a magia de criar bonecos não pode parar. Os bonecos escolheram você, meu pequeno. Você gostaria de fabricar bonecos?
Davi não sabia o que responder. Bonecos sempre foram sua paixão, mas ele era tão pequeno!
- Mas será que eu consigo? Não sou ainda muito criança?
- Os bonecos te ensinam tudo o que você precisar aprender...
Davi percebeu, era uma oportunidade que nunca mais teria.
- Sim, eu quero! Quero ser como você, senhor Syn!
Albert deu uma risada gostosa.
- Então... - estalou os dedos.
Os bonecos das prateleiras começaram a se mexer. Puxaram a barra da calça de Davi o levando até os fundos da casa - a oficina de bonecos. Davi voltou e pulou no velho Syn num abraço apertado.
- Obrigado, senhor Syn! - e foi junto com os bonecos.
De debaixo da poltrona em que Davi estava sentado, eis que saiu um boneco.
- Guri! - disse senhor Syn com a voz daquela criança dentro dele e olhos marejados.
- Chegou a hora da sua segunda chance, meu amigo!
O velho Syn colocou Guri na palma da mão e caminhou em direção à porta.
E lá foram os dois numa segunda chance de se aprender a viver. Amar, cuidar, conviver. Aprender a cuidar de quem se ama por toda a sua convivência. E depois...

domingo, 8 de agosto de 2010

Sobre sensibilidade.

De novo ele veio. De novo as mesmas desculpas. De novo o mesmo temperamento. Mesmo assim a mulher o esperara depois de mais um dia de trabalho. Ele mal a via e já ia direto para o banho e depois, imediatamente, dormir. No outro dia, como todas as manhãs, a mulher já havia acordado e ido trabalhar lhe deixando o café pronto. E assim foi por 15 anos e alguns meses. Para ele, ela passara a ser talvez uma parte da mobília. Certa manhã de sol, ele acordou e se arrumou automaticamente. Passou pela cozinha, tomou seu café já pronto como sempre fazia. Teve mais um dia de trabalho cansativo, chegou em casa, foi direto para o banho e, imediatamente, cama. Mas a cama estava espaçada, parecia maior... Olhou ao redor. Não, a cama não aumentou. Será que estava enlouquecendo? De repente toca a campainha. "A uma hora dessas, quem pode ser?". Abre a porta pronto para amaldiçoar quem quer que seja que veio importunar um homem cansado a essa hora da noite. Foi surpreendido, não havia ninguém na porta, mas sim uma rosa com um cartão e algo parecido com um anel. No cartão estava escrito: "Feliz 16 anos de casamento!". Ele conhecia aquela letra. A letra combinava perfeitamente com o vazio na cama e o anel tinha a mesma espessura do silêncio que o cercou naquele instante. Não era uma mesa que ele havia passado do meio da sala para o canto, era de sua mulher que ele havia esquecido, da pessoa que mais se importava com ele. Como achá-la agora? Onde procurar? Saiu sem rumo pelas ruas e acabou chegando numa praça, onde, em seu primeiro encontro, tinha dado uma rosa vermelha para sua mulher. Lá, encontrou uma caixinha de jóias que logo reconheceu. Nela, outro bilhete: "Deixo meu coração contigo, como ele sempre foi seu. Cuide dele e não se esqueça que ele bateu unicamente por você. De sua eterna Beatriz." Marcelo nunca soube o que houve com sua Bia. Desespero apenas não mostra no que ele se afundou. Arrependimento não descreve o que sentia. Mas afinal, se em 16 anos ele esqueceu algo inesquecível como sua amada, em quanto tempo esqueceria aquela caixinha, aquela praça, aquela rosa e aqueles cartões?

sábado, 7 de agosto de 2010

Sobre um desabafo pessoal.

Olá, sou Albert Syn e faço bonecos. Na verdade não são bonecos comuns... Depois que estão prontos, são acionados e praticamente ganham vida. Mas de uns tempos pra cá eles estão se comportando de forma estranha; não são mais simplesmente bonecos, são uma cópia de mim. Eles passam meses me observando atentamente e depois começam a agir como eu, usar coisas que uso e até mesmo gostar das coisas que gosto! Mas o que me incomoda mais é o fato deles roubarem meus sonhos para eles... Tudo o que quero fazer meus bonecos fazem, com a minha ajuda, e depois se esquecem de mim. Fico feliz com o dom que ganhei, fazer bonecos é algo precioso. Mas às vezes quando converso com o que habita dentro de mim me pergunto se não recebi o dom errado... Gosto do que sei fazer, mas gosto mais ainda do que me é negado por natureza. E agora me encontro preso aos meus bonecos! Não consigo parar de fabricá-los! Eles realizam coisas por mim, o que me deixa aparentemente feliz, mas no fundo... Sim, eu sei que no fim terminaremos iguais, e que eles são só bonecos. Mas o que pode haver até lá? Então, comprador deste boneco, te peço, me ajude!