"Comece pelo começo - respondeu o Rei, muito sério - E vá até o fim. Quando terminar, pare." (Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll)

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sobre um desabafo pessoal. - Continuação III

Davi estava ali parado, admirando seu primeiro boneco. Se admirando. "É uma cópia perfeita.", pensava.
- E então Davi fez o boneco à sua imagem e semelhança! - e o Pirata ria aquele riso que provocava calafrios em Davi. - Só não esqueça que ele deve te obedecer.
O pedaço. Davi pegou a tesoura, cortou um pedaço de seu cabelo e colocou no boneco. "Não podia ter sido melhor", pensava o Pirata sorrindo de lado com os olhos brilhando sinistramente.
- Olá, Davi! - a voz de Davi saía de dentro do boneco - Já sei o que devo fazer. Me dê seus materiais escolares que volto agora para sua casa.
- An... Tudo bem.
Davi estava impressionado. O boneco mal tinha sido finalizado - ou iniciado - e já entendia porque tinha sido feito. Seria mais fácil do que ele havia pensado.
E foi assim por semanas seguidas. O Davi-boneco vivia enquanto o Davi-menino fazia seus bonecos. Mas todos os dias a criação visitava o criador, foi a forma encontrada por Davi para se manter informado apesar de "ausente".
Certa vez, quando já estava no fim da ponte, Davi-boneco encontrou alguém lá o esperando. Estava sentado com as pernas esticadas no chão, braços cruzados. Davi não podia ver seus olhos, estavam tampados por um chapéu. Era o Pirata.
- Olá, oh grande boneco! - naquele tom transbordante de ironia antes do riso de lado.
- Olá, Pirata!
- Não quer dar uma volta comigo?
- Tenho que ver Davi primeiro. Pode ser?
- Ele está muito ocupado agora. Venha comigo.
- Então tá... Onde vamos?
- Quero te apresentar a um velho amigo meu.

Davi estava na oficina, como sempre. Olhou no relógio e se perguntou sobre o atraso de seu visitante diário. Ele nunca se atrasa. Mas logo esqueceu. A bonequinha de vestido rodado e sapatilha estava na cozinha fazendo bolinhos de chocolate. Aquele cheiro gostoso que saia de dentro do forno ia para a oficina junto com os leves e quase inaudíveis passos da boneca. O leite quase não se mexia no copo acompanhando o andar coreografado da quase-menina. Até que uma poça branca se formou na porta da oficina.
A boneca deixara a bandeja cair e estava parada, sem reação... Não acreditava no que via. Não podia!
Era alguém tentando acabar com seu próprio eu, era Davi estrangulando Davi, era o boneco se livrando da sua origem.
Com o barulho da bandeja caindo os outros bonecos correram para ver o que acontecia. Agora Groy, Kim, Sloop e Dot tentavam tirar o menino do aperto do boneco. Foi quando Kim pegou sua adaga e perfurou o boneco que finalmente largava Davi que caía fraco no chão.
Impossível. Pingavam gotas... Vermelhas. Sangue.
- Belo golpe, Kim! - ria o Pirata que acabava de aparecer na oficina.
- Você! - e Kim apontava furiosa a adaga contra o Pirata - O que você fez?
Uma risada vinha da sala. Um riso indescritível. Um riso que mais parecia um agouro. E todos deram um passo para trás quando viram aquela figura adentrar a oficina.
Não era um deles. Era humano. Aparentemente louco, mas humano. Tinha roupas encardidas de palhaço, o pouco cabelo que tinha se embolava nas laterais da cabeça, no rosto aquela típica maquiagem de palhaço. Assombrosa, já desgastada.
- Um... palhaço?! - Davi se levantava do chão ainda um pouco tonto e sem ar.
- Logo se vê que você é um deles - a voz do palhaço era quente e escura, uma nuvem de fumaça - Um palhaço, eu. Você deve pensar que sou mais um desses idiotas que vestem roupas coloridas e se passam por bobos para fazer rir as tolas crianças. - e ele ria - Eu sou um palhaço, sim. Mas um palhaço legítimo. Vocês, pobres espectadores, precisam ser enganados por nós para rir. Seu sorriso e, claro, suas lágrimas, estão em nossas mãos. Nós não "trabalhamos" para vocês. Muito pelo contrário... Vocês são nossas marionetes e até nos divertem. E é quando a vida vira as costas para você e passa seu sorriso para o rosto de outro alguém, que você descobre... É aí que você se encontra, percebe seu dom, ser um palhaço.
- Como, virar as costas, trocar sorrisos...? O que houve? - Davi já não entendia mais.
- Não temos tempo para histórias agora garoto. Você já está tempo demais no meu lugar.
- Pare! - Davi nunca tinha escutado aquela doce boneca gritar dessa maneira. Ela chorava.- Ele deve saber.

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