"Comece pelo começo - respondeu o Rei, muito sério - E vá até o fim. Quando terminar, pare." (Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll)

sábado, 19 de março de 2011

Sobre um desabafo pessoal - Continuação VI

Paredes todas brancas, alguma folhagem num canto, pessoas passando de um lado para o outro enquanto outras se sentam num sofá - também branco -, seu silêncio revelando a tensão em que se encontram. Salas de espera de hospitais são sempre iguais. Hoje quem se sentava no sofá branco em silêncio eram Aline e Ricardo, que esperavam notícias do seu filho, Davi.
- Vocês são os responsáveis de Davi Scolétte? - era um jovem médico que adentrava a sala.
- Sim! Como está nosso filho, doutor?
- Agora está bem, sob todos os cuidados, podem ficar tranquilos. Os senhores podem me acompanhar até a minha sala um instante, por favor? Por aqui ...
Os pais ainda aflitos sentaram-se nas cadeiras de frente ao médico que, Aline podia ler agora em seu jaleco, se chamava Luiz.
- Bom, a informação que recebi foi a de que vocês não estavam presentes no momento em que seu filho se acidentou, certo?
- Sim. Davi saiu de casa com a bicicleta logo após o almoço dizendo que ia na casa do Bruno, seu amigo. Só agora no fim da tarde, com o telefonema do hospital, que voltamos a ter notícias de Davi.
- Entendo. Bom, segundo o motorista, que foi quem chamou a ambulância, Davi estava pedalando de maneira muito acelerada o que pode ter lhe provocado um desmaio e, nesse momento, uma van vinha fazendo a curva em que ele se encontrava e acabou, inevitavelmente, se chocando com o garoto que, além de estar em estado quase desacordado, se encontrava na contra mão.
Aline não conseguiu conter o choro ao imaginar o que havia acontecido com seu pequeno menino. Ricardo abraçou a mulher.
- O motorista freou imediatamente ao ver o garoto, o que reduziu o impacto do que poderia ter sido um acidente fatal. Fisicamente, ele quebrou o braço direito, teve alguns cortes pelo corpo e pode sentir também dores devido ao choque do corpo e cabeça com o chão, mas nada muito grave e tudo devidamente tratado. Quanto ao psicológico é o que quero explicar a vocês. É frequente a perda de memória em pessoas que passaram por eventos traumáticos, é o que a medicina chama de amnésia traumática. A desaceleração no momento da colisão faz com que o cérebro seja jogado violentamente para frente e para trás e se choque com a parte óssea da cabeça. Nessas circunstâncias, a vítima pode sofrer alterações na coordenação motora, na fala e até no nível de consciência. Por fim, há o efeito psicoemocional, no qual o cérebro, por meio de uma espécie de mecanismo de defesa, bloqueia as lembranças relacionadas ao trauma. É impossível prever se a vítima pode voltar a se lembrar ou não. No caso de Davi, como ele estava desmaiando exatamente no momento do choque, e ele ainda se encontra sedado, não há como afirmar essas possibilidades. Nós vamos o manter desacordado ainda por um tempo enquanto fazemos mais exames. Quando Davi acordar teremos mais respostas e, claro, vocês serão informados. Tudo bem?
- Certo, doutor. Há alguma previsão de quando Davi poderá acordar? - Agora era Ricardo quem falava, ou tentava falar.
- Bom, como o choque não foi aparentemente tão grave, dentro de um ou dois dias.
- Certo.
- Agora, se me dão licença, tenho mais pacientes me esperando. Fiquem a vontade. - doutor Luiz deixou a sala.
- O nosso Davi, Ricardo!
- Ele vai ficar bem, meu amor.

Estava tudo um pouco embaçado, mas Davi conseguia identificar uma luz, ouvir barulhos emitidos por aparelhos, sentir que estava deitado. Fechou ou olhos, apertou-os bem e abriu-os de novo.
- Pai? Mãe?
- Davi! - Aline acariciava o filho.
- Como você está, campeão?
- Hã, não sei... Se eu soubesse como vim parar aqui até responderia. O que aconteceu?
É, parece que ele não vai mesmo se lembrar.
- Você caiu, meu amor. Caiu da escada quando descia para tomar café.
- Eu sabia que tinha que parar de descer aquela escada correndo, vocês já tinham me falado!
Aline e Ricardo sorriram. O primeiro sorriso em três cansativos dias de estadia num quarto de hospital.
- Bom dia! Então você resolveu acordar, garotão? - era o doutor Luiz que entrava no quarto - Como se sente, alguma dor? - e mexia em Davi enquanto falava.
- Só um pouco. Essas escadas... Sabia que uma vez eu quebrei meu pé fazendo essa mesmo burrice, doutor? Descer escadas correndo!
E eles sorriram. Não era um riso de quem se alegra, era quase um riso de pena de um menino que, ainda fraco, se culpava por algo que nem havia acontecido. Mas ainda assim era um riso.
- Agora vamos ver então se você aprende! Ricardo, você pode me acompanhar, por favor?
Os dois saíram da sala.
- Bom, pelo que eu entendi Davi não se lembrou e vocês já trataram de resolver com uma escada.
- Nós não sabíamos o que fazer...
- Tudo bem, pelos exames eu já esperava que ele não se lembrasse e é natural que pedisse uma explicação. No mais, foi só a memória que falhou, as outras possíveis consequências, felizmente, não foram observadas. Enfim, ele fica aqui por mais uns três dias só por garantia e depois está liberado.
- Obrigado, doutor!

Davi não sonhava, só dormia sem nenhum lampejo de imaginação. O escuro dos seus sonhos deu lugar à luminosidade do dia que nascia depois de suas "primeiras" três noites. Ele recebera alta.

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