No meu já conhecido esgotamento por tanto fazer, decidi pegar meu carro um fim de tarde e ir. Pra qualquer lugar. Sumir. As rodas foram girando até me levarem a uma campina com uma velha árvore sozinha. Sentei-me à sua sombra e fiquei ali observando o laranja do crepúsculo lavar o céu.
Adormeci.
Uma criança escondida debaixo de uma mesa velha de venda de rua. A época é outra, muito distante. Ela está enrolada em uma capa, com o capuz cobrindo o resto. Ela respira nervosamente e parece esconder algo sobre a capa.
Uma explosão. Meu Deus, o que está acontecendo? Tudo treme e uma poeira se espalha em toda parte. A criança tosse. Respira fundo, olha por sobre a mesa e corre. Corre tanto que tenho que lutar para acompanhá-la.
Há pessoas mortas no chão e muitos feridos espalhados. É um cenário de guerra. Talvez seja uma, eu não sei...
Um homem fardado em preto agarra a criança por trás. O capuz cai, é uma menina. Ela se debate duramente tentando se livrar daqueles braços estupidamente fortes que a sufocam. Por fim ela o morde. Ele grita um grito surdo, coberto pelo barulho de outra explosão e a solta. A menina então recoloca o capuz e volta a correr.
Quando o homem a soltou, ela provavelmente se machucou na queda, agora manca da perna esquerda mas corre. Ainda muito.
Ela se afasta cada vez mais do vilarejo que estávamos. Vendo mais de longe posso afirmar: é uma guerra. Há tanques por toda parte e zeppelins, muitos deles circulando o céu.
A menina agora entra em um túnel muito baixo, preciso ficar de joelhos para conseguir atravessá-lo. Ao fim do túnel há três lobos. O macho alfa com seus dentes à mostra. A menina para um instante assustada. Com muito cuidado ela se aproxima dos lobos que começam a fazer barulhos ferozes com suas gargantas. Ela estende a mão e consigo ver alguma coisa nela, como se fosse uma espécie de tatuagem, algum símbolo gravado. Ela acaricia o macho alfa e os lobos vão andando. Vão embora, uivando. A menina olha pra mim com grandes olhos cor de cobre e volta a correr.
Estamos de frente a um grande barranco. Ela começa a escalar. Eu fico apreensiva olhando-a. Sua destreza é impressionante, mas não mais do que a altura daquilo. Num susto vejo que seu pé esquerdo, o da perna machucada, escorregou e ela está caindo. Corro para segurá-la pouco antes que ela atingisse o chão. Ela arqueia seu corpo e geme baixinho. A queda deve ter lhe causado dor. Eu a coloco então em minhas costas e amarro sua capa em torno de mim de forma que ela está firmemente presa. E começo minha escalada.
Não parece que carrego alguém comigo. O peso da criança é o de uma pluma e eu não entendo. A subida fora menos difícil do que o que calculei. Chegando ao topo, a libertei de mim. Ela olhou para traz, para o que restava de um vilarejo ainda em processo de final destruição. Abaixou a cabeça e segurou minha mão.
Ela está novamente correndo. Agora me levando com ela. Um pouco a frente na colina ela para e começa a cavar o chão. Sem entender eu repito sua ação. Ela tira então da capa uma pequena muda de alguma planta que eu não conheço e coloca em minhas mãos.
O que eu devo fazer, plantá-la? Que sentido faz isso? Para que plantar uma árvore em meio a uma guerra devastadora? Não entendo... Ela olha pra mim cor urgência em seu olhar cor de cobre e eu a obedeço. Eu planto a muda e apalpo a terra para que fique firme. Ela olha para cima, para o céu cinza de fumaça. Começa então a chover. Uma chuva fina, tímida e fria... Ela olha para mim e sorri. O sorriso mais bonito que consigo me recordar de já ter visto. E então ela está ficando distante, os barulhos antes ensurdecedores da guerra começam a cessar... Não sinto mais a chuva tão fria... Eu...
Acordei.