Davi se esforçava para acompanhar os fatos ainda tonto pela tentativa de estrangulamento do boneco contra ele.
- Saber do quê? Quem é você? Por que Davi, quer dizer, meu boneco tentou me matar?
- Você não vai precisar dessas respostas no lugar para onde vai. - o Palhaço agora parecia ansioso.
- Gerard Syn, sente-se e procure ficar calado! - era a boneca quem falava, mas com um olhar carinhoso e ao mesmo tempo severo e voz imperativa.
Aparentemente hipnotizado, Gerard Syn, o Palhaço, sentou-se na poltrona em que o velho Albert se sentava. Gerard até se parecia com o velho Syn.
- Bom, parece que você terá que ouvir mais uma história, meu rapaz. - começou a boneca - Se for um bom observador, deve ter reparado na semelhança de sobrenomes. Eles eram primos, Albert e Gerard. Ganharam o primeiro boneco no mesmo dia, Albert ganhou Guri e Gerard ganhou Mosly, o Pirata.
Todos olharam para o Pirata, ele estava na janela de cabeça baixa, olhos fechados, pernas e braços cruzados, como de costume. Quando ouviu seu nome levantou a cabeça e tirou lentamente o chapéu. Seus olhos miravam o longe, estavam desfocados mas brilhantes. Dessa vez, porém, o brilho não era de insanidade, era o reflexo de lembranças, saudade, talvez nostalgia. A boneca continuou:
- Até então eles apenas gostavam de bonecos, gostavam muito. Mas não sabiam nada sobre como fazê-los. Você sabe, antes de tudo o boneco escolhe o criador e não o contrário. E, curiosamente, esse cargo ficou durante muito tempo dentro da família Syn. Como Gerard era mais velho que Albert, ele teve sua vez primeiro. Como todos os outros escolhidos, ele ficou encantado com a oficina e os bonecos. Ficava aqui por dias e dias criando coisas novas. Certa vez, quando voltou para casa a encontrou cheia de gente, todos os vizinhos estavam lá. Sua mãe acabara de morrer. Tomado por uma terrível dor, ele subiu correndo as escadas e foi para o quarto da mãe, onde se trancou. E lá estava ela, na cama. Estava pálida, muito pálida. Usava um vestido e sapatilhas. Gerard não aceitara ainda sua perda. Pulou em cima da mãe e, como costumava brincar com ela, mordeu-lhe delicadamente o braço. Mas ela nada fez. Desesperado, o pequeno garoto mordeu novamente aquele braço frio. Mordeu forte, muito forte, e só parou quando sentiu o gosto de sangue em sua boca. Quando conseguiu finalmente diminuir o choro e abrir os olhos, só conseguiu ver a boneca da mãe na cadeira ao lado da cama. Só conseguiu me ver. - a boneca abaixou os olhos ao se lembrar. - Ele me pegou e me trouxe para cá sem que ninguém o visse. E, no desespero e na dor de uma criança, acabou descobrindo algo que nenhum outro criador de bonecos sabia, a nossa humanidade. Não o fato de falarmos, pensarmos, sermos vivos... Isso os outros sabiam. Mas sim, como podíamos ser tão humanos a ponto de substituir pessoas em suas vidas. Ele cortou-me e colocou todo o pouco sangue que ainda estava em suas mãos dentro de mim. - A boneca agora passava a mão numa cicatriz no seu pulso direito na qual Davi nunca tinha prestado atenção. - E então ele disse, ainda chorando...
- Mãe, fale comigo! Eu sei que você está aí dentro agora. - foi o Pirata quem disse, ainda com os olhos desfocados.
- Eu acordei e sim, eu acabei incorporando traços de sua mãe, pensando como ela, sentindo, agindo. Eu me sentia mãe daquele pobre garotinho que chorava à minha frente. E então p abracei e ele se acalmou. O que não durou muito. Seu tio, que tinha sido o criador de bonecos anterior, entrou na oficina gritando por ele. Ele fugiu. Procuraram por ele mas não o encontravam. Suas únicas companhias éramos eu e Mosly. Como Gerard não mandava sinais de uma possível vida, Albert foi o escolhido para ficar em seu lugar. O que ninguém sabia era que Gerard nunca saiu daqui. Ele tem um esconderijo que acabou servindo-lhe de lar por todos esses anos, debaixo dessa oficina. Quando viu que Albert ocupava seu lugar, ficou profundamente triste e resolveu continuar a se esconder. Foi então que começou o que ele é hoje. Foi aí que nasceu o Palhaço. Um palhaço triste...