"Comece pelo começo - respondeu o Rei, muito sério - E vá até o fim. Quando terminar, pare." (Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll)

sábado, 18 de setembro de 2010

Sobre um desabafo pessoal. - Continuação II

A oficina era incrível! Vários instrumentos que Davi nunca tinha visto. Seus olhos brilhavam!
- Primeiro você precisa saber para que serve cada um deles - começou Dot.
- Com esses plásticos você faz as formas e coloca nesse compartimento depois para os bonecos ficarem fortes - continuou Groy mostrando seus músculos.
- Aqui estão os cabelos, olhos, tecidos e tudo mais que você precisar para os acabamentos. Como eu fico ruivo? - brincou Sloop com os fios cor de fogo.
- Definitivamente não - riu-se Kim - Esses são os instrumentos que requerem maior cuidado, Davi. São para bonecos de madeira e podem machucar. Todos cortam, alguns furam... Mas isso é pra depois. Quando você crescer mais um pouco é que poderá usá-los.
- Tudo bem... Hum... será que eu já posso... Meus pais! Preciso voltar pra casa!
- Você tem razão! Vá, te esperamos aqui até que volte amanhã.
- Vocês não voltam comigo?
- Não. Alguém precisa cuidar da oficina...
- Tudo bem. Então até mais!
Davi voltou para casa com a cabeça a mil! Já começava a ter ideias de bonecos para fazer. Assim que chegou em casa fechou-se no quarto e começou a esboçar bonecos.
- Davi, por onde esteve o dia todo?
- Andando por aí com minha bicicleta, mãe. - respondeu Davi escondendo seus desenhos. Ele não poderia contá-la. Ela não acreditaria e o proibiria de sair de casa.
- Hum. Amanhã começam suas aulas de administração para aprendizes, não se esqueça.
- Mas mãe, eu já disse que não quero trabalhar na empresa do papai quando crescer!
- Já conversamos sobre isso, Davi. Agora vá tomar seu banho, comer alguma coisa e dormir. Amanhã você tem que acordar cedo para ir para a escola. - Aline beijou o filho emburrado e foi se deitar.
- Droga.
Davi fez o que sua mãe mandou e foi dormir ainda emburrado.
Na manhã seguinte a aula parecia não passar. Ficou menos intediante na aula de ciências quando falaram sobre clones. Uma luz ascendeu-se na cabeça de Davi. Ele agora era um garoto que fazia bonecos e tinha uma oficina toda equipada. Mais do que isso, ele tinha sido escolhido e estava sendo treinado para criar bonecos que ganhariam vida. Sua vontade era se dedicar totalmente aos bonecos, mas com a escola e agora as detestáveis aulas de administração, era impossível. Talvez se ele pudesse estar em dois lugares diferentes ou, mais do que isso, ter duas vidas. Paralelas.
O sinal tocou acordando Davi de seus pensamentos. Rapidamente ele jogou seus materiais na mochila e foi para o carro onde sua mãe já estava esperando. No caminho para casa ele não falou nada, mas seus olhos brilhavam refletindo o que passava em sua cabeça. Almoçou até mais do que o normal de tão animado que parecia estar.
Quando terminou seu almoço, Davi foi para o quarto e começou a tirar suas medidas e anotá-las num pedaço de papel.
- Vamos, Davi! Vou te deixar na aula - Aline passou lembrando Davi de sua aula.
Ele guardou o papel com as medidas no bolso e foi com a mãe.
A aula era realmente um saco. O que eles tinham na cabeça para ensinar administração para meninos de nove anos? Davi queria sair logo dali. O que o confortava e acalmava um pouco era saber que depois de sair dali não precisaria mais aturar nada que incluísse salas de aula. Sua ideia era ótima!
Com o fim daquela aula eterna que mais parecia uma tortura, Davi saiu em disparada para a casa do lago. Os bonecos pareciam estar no meio de uma brincadeira quando ele chegou. Foi logo os convocando:
- Venham até a oficina, eu tive uma ideia brilhante! Sentem aí pra eu explicar. Pronto? É o seguinte: quero criar um boneco de mim, como um clone. Além de ser fisicamente igual a mim, ele deve pensar e agir da mesma forma que eu, assim ele pode passar a viver no meu lugar e eu terei o dia todo para ficar aqui com vocês e criar bonecos. E então, vão me ajudar?
Os bonecos se entreolharam e começou a maior bagunça. Todos falando ao mesmo tempo o que achavam daquilo.
- Hey, calma! Um de vocês não pode falar por todos?
Saiu então, detrás do armário, uma boneca linda na qual Davi nunca havia reparado. Ela usava sapatilhas, vestido rodado, fita no cabelo, e era tão doce, uma perfeita bonequinha. Ela disse timidamente com sua voz suave:
- Não acha um pouco perigoso? Quero dizer, não sabemos até que ponto ele será igual a você ou poderá ser controlado. Por mais que vocês se pareçam, você é humano e ele continua sendo um boneco apesar de tudo.
- A menos que você faça as coisas direito, consultando alguém que realmente saiba. - todos olharam para a janela.
O ambiente que parecia até ter se aquecido com a voz suave da boneca, se congelara quando o boneco sentado na janela falou. Não dava para ver o seu rosto, seu chapéu de pirata o cobria.
- O que você quer dizer? - perguntou Davi ao pirata, curioso.
O pirata deu um sorriso como de superioridade, respirou fundo teatralmente e começou a dizer:
- É simples - ajeitou o chapéu com a ponta do dedo, ainda de olhos fechados - se fizer o que eu digo, marujo.
Pulou da janela para a mesinha e continuou enquanto andava:
- Fazer o boneco é o de menos, você tira suas medidas, faz a forma e pronto. Seu cabelo e olhos, convenhamos, não são nada inovadores, nós os encontraremos facilmente no estoque. O boneco ganhar vida é natural uma vez que a função foi passada a você. O ponto é: o boneco não pode ter pensamentos e, menos ainda, sentimentos próprios. Para isso, já dizia a grande bruxa dos mares, é preciso uma única coisa... - seus olhos brilhavam de maneira estranha - É preciso algo seu no boneco, algo do seu corpo.
- Do meu corpo? - espantou-se Davi - Mas o quê?
- Isso já não é mais comigo, marujo. Só se lembre de que o seu pedaço determinará a obediência do boneco. - e saiu andando.
- Mas, mas... Volte aqui! - gritou Davi, mas o pequeno pirata se conteve em apenas fazer um gesto com as mãos e continuar seu caminho.
Pense, Davi. Pense. Sem mais escola nem aquelas aulas chatas de administração. Papai e mamãe estão sempre tão ocupados que não vão notar a mínima diferença entre mim e um outro eu. Passar o dia todo criando bonecos, convivendo com eles. Isso vale. Mas um pedaço de mim? Não, eu não vou me machucar, não sou louco. Mas eu posso tirar algo meu, do meu corpo, sem me machucar. Claro!
Silêncio. Os bonecos esperavam ansiosos, olhos aflitos.
- Bom, acho que temos um boneco para fazer!
- Davi! - a voz doce sumia em meio à euforia.
- Aqui estão minhas medidas. Dividam-se em grupos!
Enquanto os bonecos se agrupavam em meio ao tumulto que tinha virado aquela pequena oficina, a doce boneca se afastava sozinha sem ninguém perceber, uma lágrima escorrendo pelo seu rosto pequeno.
- Vocês, peguem a massa necessária para a forma! - comandava Davi - Vocês, busquem os panos! Vocês, peguem algum conteúdo para o boneco! Vocês, façam os sapatos! Vocês, cuidem das unhas e dos olhos! Vocês, busquem os cabelos!
Davi estava eufórico, até sua respiração estava acelerada!
- E então, Davi? Pronto para ser seu próprio criador?
O pirata sorria um riso malvado de trunfo doentio por detrás da porta:
- A oficina é realmente incrível, Davi!

2 comentários:

  1. Continua incrível... E me deixou muito curioso pela continuação. Como a infância pode ser profunda...
    Ainda vejo um livro no horizonte!

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  2. Ana.... continua logo! Realmente pede um livro! Super curiosa!

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